quinta-feira, 31 de maio de 2012

OS PERDIDOS! do Escritor camarense José Bornéo

Remetido pelo Escritor Camarense José Bornéo, transcrevo para leitura este belo poema em forma de crônica...

OS PERDIDOS

Navegam as emoções nos escaninhos da vida ...
Um beijo vale tostões
na dignidade esquecida.
Prazeres não são apenas prazeres:
são mecanismos pró-tempore,
formas de esquecer dissabores.
Corpos são armas:
brinquedos sutis;
cascas revestindo perdedores.
Restam faíscas humanas ... na devassidão da indecência,
onde apenas se observam refugos das essências humanas,
aviltando nossa decadência.
No fundo somos iguais:
nem maiores nem melhores,
Apenas almas errantes,
que se buscam ansiosas,
na procura de se encontrar,
para dividir os caminhos de sinais tortuosos.

Ao entrar no bar eu os vi: ele entornava um copo contendo uma bebida qualquer; ela parecia ausente, vivendo momentos distantes de um mundo diferente.
Sua figura demonstrava traços de uma beleza antiga que, provavelmente, havia se deteriorado através de um conjunto de situações, de uma vida mal vivida, onde o corpo fora alvo de agressões e prazeres em constante alternância. O homem não demonstrava emoções. Sua aparência derrotada destilava o reflexo de tudo que a sociedade condena e não deseja expor aos seus ilustres membros.
Observador atento, eu me fixei naquelas figuras diferenciadas, até mesmo porque o ambiente nada mais oferecia de interessante. Ao contemplá-los busquei identificar o que os unia: a desgraça ? A miséria? Ou a dor de ainda existirem, apesar de seus esforços destrutivos? O que buscavam e quais seus desejos de maior imediatismo? Impossível decifrá-los nada diziam e seus gestos desleixados os faziam parecer isolados do mundo ao redor. Nada me fazia crer a existência de vontades naqueles dois seres. Um bebia, talvez esgotando o amargor da taça da vida, o outro, a dama (dama ?)  apenas observava o nada, o longínquo e distante nada ... Quem sabe seus pensamentos criavam imagens de saudades, de futuros dias, ou... simplesmente estavam imóveis, em cega contemplação.
Olhando ao redor, eu conseguia ver o vazio do ambiente, disfarçado apenas por um distraído garçom vestido com algo encardido, que em outras eras teria sido um paletó branco. Ele ficava no seu reduto, o também encardido e gorduroso balcão, que no momento se parecia com um fortim inexpugnável, onde só poderiam entrar privilegiados convivas.
O som? Ah, sim, o som! Ele existia, vindo de um aparelho qualquer, que já devia ter tido melhores épocas, ouvia-se uma música indefinida e dissonante. De qualquer forma não importava, pois nenhum de nós lhe dava importância, tão voltados aos nossos "não afazeres" do momento.
O tempo, indefinido, como todas as outras coisas, não contava, apenas deslizava na sua impessoalidade muda. As luzes ajudavam a transformar o ambiente numa caverna que abrigava seres estranhos e fugidios, que buscavam o abandono e o anonimato como se não pertencessem ao mundo dito normal.
Em algum momento algo de novo aconteceu, as atitudes do casal se modificaram, parecendo-me observar um maior dinamismo em suas atitudes. O homem abandonou o copo e aproximou sua boca do ouvido da mulher, sussurrando-lhe por instantes algumas palavras, que sem dúvida causaram efeito imediato, pois ela modificou o olhar perdido, voltando-o para ele. Suas sobrancelhas arquearam-se, como se duvidasse do que ouvia, mas num quase imperceptível movimento, houve um aceno afirmativo.
Sua mão depositou-se na mão do companheiro e seu corpo pareceu firmar-se de forma mais ereta, demonstrando um resquício de orgulho, talvez outrora existente.
Já não me parecia estar vendo apenas dois fracassados perdendo-se em devaneios e vícios, entregues a sorte e ao destino incertos. Os cigarros acesos iluminavam novas formas e até acreditei estar a ver novas faces, que exprimiam um sopro maior de vida, relances de um fulgor esquecido, naqueles corpos combalidos pelas vicissitudes do tempo e do mundo.
Levantaram-se ainda de mão dadas e seus passos trôpegos os conduziram ao balcão, onde deixaram meia dúzia de trocados. Dirigiram-se para porta e, sem olhar para trás, seguiram pela noite escura, em qualquer direção, em rumo ao incerto.
Minhas visões se perderam mas, dando asas a minha imaginação, pensei vê-los embalados em sonhos e prazeres, mesmo que por breves momentos, esquecidos de todo o resto. O mundo que eu vira estava por terminar, restavam no bar apenas duas figuras de interesses distintos: o garçom, esvaziado pela mesmice de sempre, desinteressado do vazio que o circundava. O outro? Era eu, para quem nada mais restava enxergar. Somente poderia olhar para dentro de mim mesmo, onde veria o espelho,... espelho, que acabava de refletir minha completa solidão.

Bornéo - 2012

Nenhum comentário:

Postar um comentário